O Livro de Ónio

Dez 2, 2021 | Destaques

O LIVRO DE ÓNIO reúne a obra poética de António Hartwich Nunes, figura escondida da cultura portuguesa.

 
1. A PRÉ-HISTÓRIA DESTA HISTÓRIA

Foi no final de 2005 que li, pela primeira vez, a poesia de Guilherme de Faria. O seu segundo livro – Mais Poemas, publicado em novembro de 1922 – imprime dois elementos que, então, me chamaram a atenção: «Lírios de sangue» é dedicado a «António etc. Nunes»; adiante, em «Poema», encontramos uma experiência partilhada com um amigo:

«Ónio ouvia os gritos na azinhaga!
Guilhe sentia os gritos na alameda!
Eram sombras, aos gritos, na azinhaga!
Eram sombras, aos gritos, na alameda!

E a noite procelosa e dolorosa!
E os gritos roucos, na azinhaga, além!
E a sombra macilenta e dolorosa!
E além, a soluçar, sombras de Além!

Floriram rosas bravas em outubro.
No jardim do castelo, à beira-Mar,
Floriram rosas pálidas de outubro!
Rosas prantadas na aridez do Mar…

E o Sol vai a morrer, minialmente rubro,
Nas ondas nacaradas do alto Mar…».

Seria esse «António etc. Nunes» de «Lírios de sangue» o «Ónio» de «Poema»? E que relação teriam com António Hartwich Nunes, autor do mote de «Velha cantiga», poema de Saudade Minha, o quarto livro de Guilherme de Faria, publicado em maio de 1926?

«Sonhei um sonho tão belo,
E foi pior para mim…
Agora, para esquecê-lo,
Gasto a vida até ao fim».

Apesar de ter escrito esta quadra – que aí se desdobra no poema de Guilherme de Faria –, não encontrei qualquer referência a um poeta cujo nome [ou pseudónimo] fosse António Hartwich Nunes.
Só em 2006, quando me foi confiado o primeiro espólio de Guilherme de Faria, reencontrei os nomes António Hartwich Nunes e Ónio e confirmei que se tratava da mesma pessoa. Entre centenas de outros documentos, 15 estavam relacionados com este amigo de Guilherme de Faria: dez cartas [bilhetes-postais ou cartões], dois retratos de António Hartwich Nunes [um deles com dedicatória], uma aguarela que ilustra um autógrafo do poema «Três quadras», um desenho a tinta da china e uma pagela com o Sagrado Coração de Jesus e uma oração em alemão.

Foi a memória de Guilherme de Faria que possibilitou, em maio de 2007, que Eduardo Hartwich Nunes me escrevesse da Suíça, onde então residia. Expliquei-lhe que o seu pai não era para mim apenas um impessoal António Hartwich Nunes, mas o Ónio, amigo tão querido de Guilherme de Faria.
Encontrei-me pessoalmente com Eduardo Hartwich Nunes e com Isabel Câncio Reis Nunes, sua esposa, em setembro de 2007, em Leça Palmeira, na casa da filha mais nova de Emmerico Nunes. Aí, foi-me confiado um espólio com mais de 150 autógrafos de Guilherme de Faria [cartas e poemas], fotografias e até um retrato pintado por António Hartwich Nunes; assim como 47 cartas que escreveu a Guilherme de Faria. De um momento para o outro, esta amizade era testemunhada com um espólio de mais de duzentos documentos.

 
2. ANTÓNIO HARTWICH NUNES

Nasceu no dia 20 de junho de 1905, em Lisboa. Foi o último dos oito filhos de Silvestre Jacinto Nunes e de Maria Ferdinanda von Moers Hartwich.
António passou a infância em Lisboa, na Rua dos Duques de Bragança, e em Carcavelos, numa dependência do palácio da Cartaxeira, para onde se mudou com a família em 1911.
No ano letivo de 1921-22, no Liceu Passos Manuel, foi companheiro de Guilherme de Faria e de João da Câmara. Completou a Instrução Secundária em julho de 1929, com cursos complementares de Ciências e de Letras.
Entre 1930 e 1934, trabalhou como empregado comercial na Philips e, depois, na Michelin. Em 1932 conheceu a holandesa Eva Wilhelmine Cohen, com quem casou no final de 1934. Partiu, então, para a Holanda, tendo estabelecido residência em Haia, cidade onde foi Cônsul de Portugal em 1936, nomeado por Óscar Carmona. Nesse mesmo ano, nasceu o seu primeiro filho: Eduardo Hartwich Nunes.
A família mudou-se para Paris em 1937. António trabalhou, então, na Grand National Films; mas o contexto político determinou que, passado um ano, regressassem à Holanda e, depois, a Portugal.

 

 

No final de 1939, estabelece-se em Vilar Formoso, ao serviço do Secretariado de Propaganda Nacional [SPN], onde dirige o posto fronteiriço de Turismo – o primeiro criado em Portugal, por António Ferro – e onde acolhe, em junho de 1940, milhares de refugiados que chegam à fronteira com os vistos concedidos por Aristides de Sousa Mendes.
Em 1940 regressa a Lisboa, onde nasce o segundo filho: António Guilherme. Chefia a secção de Turismo do SPN até 1945, onde se relaciona com Cottinelli Telmo. Em 1946 coordena a publicidade da KLM em Portugal e, no ano seguinte, reintegra o SPN, então denominado Secretariado Nacional da Informação [SNI].
Entre 1961 e 1962, António Hartwich Nunes instalou-se no seu atelier em Lisboa, na Rua de Santiago. Dedicou-se à pintura e à escrita até ter entrado, em junho de 1964, no Grande Sanatório do Caramulo, onde veio a falecer no dia 2 de fevereiro de 1966.
Tal como Emmerico, António foi um artista com uma rara sensibilidade estética e, mesmo não tendo podido estudar arte – como o seu irmão mais velho, que partiu para Paris em 1906 –, povoou a sua vida de desenhos, pinturas e poemas.

 
3. ÓNIO E GUILHE

António Hartwich Nunes e Guilherme de Faria conheceram-se no ano letivo 1921-22, no Liceu Passos Manuel. A amizade está – como vimos – documentada num espólio com mais de duzentos documentos, fundamentalmente constituído por cartas e poemas autógrafos.
A correspondência entre os dois começa em maio de 1922, prolonga-se até ao final de 1928 e guarda inscrita uma amizade rara e comovente.
Nas primeiras cartas, percebe-se a intensidade poética desta amizade. No dia 13 de maio de 1922, Guilherme de Faria escreve: «Da turma […] de amigos que tenho – tu és dos melhores, dos amigos mais amigos». Passados cinco dias, lê-se noutra carta: «O teu espírito é gémeo do meu. E eleito! Tem laivos de luz divina, meu António!». Lê-se ainda nessa mesma carta: «és António! […] António como o outro». Referia-se certamente a António Nobre. É muito interessante que «Ónio», essa espécie de alter ego poético de Hartwich Nunes, seja uma espécie de projeção evasiva do «Anto» de Nobre.
Não podemos, aqui, demorar-nos nesta correspondência – que bem merece ser estudada e publicada –, mas algumas cartas ajudar-nos-ão a situar a poesia de António Hartwich Nunes no contexto de uma amizade que lhe confere acuidade e inteligibilidade. Com efeito, percebemos nessas cartas que é Guilherme de Faria quem influi em Hartwich Nunes o desejo de ser poeta e quem, simultaneamente, o eclipsa; é Guilherme de Faria quem lhe apresenta os poetas – os mortos por meio dos livros da sua extraordinária biblioteca e os vivos com quem se relacionava nas tertúlias lisboetas da década de 20.
Entre tantas cartas, encontramos apontamentos como este, de Guilherme de Faria, num bilhete-postal de novembro de 1924:

«Acaso Ónio morreu?
Acaso não ouviu a frouxa voz de Guilhe,
eterna sombra de alma, a soluçar?
– Ónio da beira-mar!
Acaso ouviu,
– ouvindo sem ouvir – nos longes e distâncias,
os sons, ecos sem cor, perdidas ressonâncias
da voz que se extinguiu?…
. . . . . . . . . . . . . . . .
Olha o Guilhe, na praia, triste e sério,
erguendo as mãos ao céu
e gritando, entre nuvens de mistério,
– Acaso Ónio morreu?!».

Passados uns dias, António Hartwich Nunes responde-lhe: «Desculpa o Ónio, que não tem culpa. Ele não deixa de lembrar-se, nem do Guilh, nem de ninguém. […] Do Ónio foi que eu me esqueci há tempos. Mas ei-lo aqui. Ei-lo aqui. O Ónio! O Ónio maneja com o meu corpo. Mas há o Ónio da vida e a vida do Ónio. Duas verdades espontâneas absolutamente opostas. Deus criou Ónio e a sua vida, num só corpo, numa só espécie. E Ónio passava, simples e fácil, por entre as outras criações de Deus. Alheio, indiferente e positivo. Caminhava para a claridade viva que Deus me mostrava. E sonhava nessa claridade e vivia nesse sonho. E eu, o Ónio, sonâmbulo crente do sonho mentiroso, sonâmbulo na crença simples que faz os homens felizes, pouco cauteloso no caminho que trilhava, tropecei no meu próprio sonho e desmoronei-me. Desmoronou-se o Ónio. E agora eis o Ónio deteriorado. Mas as moléculas d’Ónio não se perderam. Moléculas d’Ónio funcionam ainda, embora dispersas. Mas elas juntar-se-ão um dia, porque Deus existe!».
Dezenas e dezenas de cartas e poemas – cartas em formato de poema e poemas em formato de carta – viajam entre a casa da Quinta da Cartaxeira, em Carcavelos, e a casa da Rua da Horta Seca, em Lisboa.
No final de março de 1926, Guilherme escreve a António: «Venho matar saudades dos belos tempos da nossa boa camaradagem de todos os dias: era, então, certa e assídua a nossa correspondência epistolar […] e milagrosa a harmonia de todos os nossos pensamentos e aspirações. Quero bem crer que, em todo o mundo, não havia duas almas tão irmanadas em virtudes e defeitos, em propósitos definidos e em mal esboçadas tendências e desejos».

Foi Guilherme de Faria quem escreveu uma espécie de prefácio para o Primeiro Livro de Ónio, conjunto de autógrafos que António Hartwich Nunes reuniu e encadernou, mas não publicou. É a Guilherme de Faria que António Hartwich Nunes – o «Ónio da beira-mar» – dedica mais poemas: entre os primeiros, na década de 20, e «Carta de saudade ao Guilherme de Faria», impressiva poesia escrita no Caramulo, em 1964, dois anos antes de morrer e 35 anos depois da morte do amigo, que termina com estas palavras:

«Não há ninguém na Beira-Mar.
Só lá estou eu
na Beira-Mar.
À espera de ti
e à espera de mim».

 
4. A POESIA DE ÓNIO

António Hartwich Nunes – ele próprio o escreveu – foi «poeta sem querer». É como se a poesia e a condição de poeta não tivessem sido um exercício da vontade, mas uma imposição da sensibilidade. Os seus desenhos e pinturas adivinhavam – na década de 20 – a possibilidade de seguir as pisadas de Emmerico, mas a vida levou António por outros caminhos. E os seus poemas da mesma época, que constituem parte significativa da poesia que escreveu, no contexto do convívio com Guilherme de Faria, obrigam-nos a pensar nos motivos por que nunca publicou um livro.
Com efeito, Hartwich Nunes conviveu de perto com outros amigos de Guilherme de Faria, da mesma geração, jovens que se afirmariam como poetas e/ou artistas, como foi o caso de Arlindo Vicente, Anrique Paço d’Arcos e António Pedro; ainda assim, António Hartwich Nunes escolheu guardar para si todas as expressões da sua sensibilidade estética, o que não o impediu de continuar a desenhar, pintar e escrever.
Os seus primeiros poemas datam do princípio da década de 20. É possível que se tenha aventurado na poesia ainda em 1920, mas terá sido o convívio com Guilherme de Faria, a partir de 1921, que motivou a escrita de poemas, muitos deles circunstanciais, no contexto dessa amizade.
A sua poesia convoca-nos para o reduto de uma intimidade sensível, uma lírica que ondeia entre a inspiração quinhentista – bucólica – e o verso ocasionalmente errático, displicente, indisciplinadamente moderno. Mais interessado no sentimento do que em questões propriamente técnicas e formais, este «poeta sem querer» não exerce sobre o poema aquele controlo que em Guilherme de Faria parece natural e que muito beneficiou da sua invulgar cultura literária e do acompanhamento tutelar de Alfredo Pimenta, aquando do processo que conduziu à publicação de Poemas.
Para lá do humor subtil – do chiste discreto – que assoma em alguns dos seus poemas, a poesia de António Hartwich Nunes é fundamentalmente amorosa, temperada por um persistente taedium vitae, expressão da desistência, da renúncia, do abandono, da consciência de que são vãs todas as lutas e ilusões. Aí se revela o rumor elegíaco, a melopeia que saudosamente lastima a perda da infância, a impossibilidade do amor, a esperança perdida.
A sua poesia estende-se por cinco décadas, mas tende a rarear-se em meados da década de 30. Apesar de ter sido «poeta sem querer» e de nunca ter publicado a sua poesia, António Hartwich Nunes – tal como Guilherme de Faria – exprimiu-se no contexto estético do neorromantismo lusitanista, aquele que certamente mais se ajustava ao seu temperamento lírico e elegíaco.
Persiste a pergunta: por que motivo nunca publicou a sua poesia? Consciente de que foi Guilherme de Faria quem mais influiu na condição de poeta de António Hartwich Nunes, creio que a profunda admiração pela obra poética do malogrado amigo, a memória intensa do tempo que partilharam e a mágoa que lhe trouxe a sua morte podem bem ter inibido o desejo de publicar a sua poesia, uma qualquer expectável necessidade de se afirmar como poeta. O tempo foi passando, os poemas foram-se acumulando, avulsos, numa qualquer gaveta e, a certa altura, restou-lhe apenas o gosto de revisitá-los, resgatando-os de um passado esmaecido, como lâmpadas apagadas «cujo ouro brilha no escuro pela memória da extinta luz…» [como escreveu Fernando Pessoa].
E, apesar de tudo, já perto do fim da sua vida, desterrado no Grande Sanatório do Caramulo, António Hartwich Nunes teve ainda forças para escrever:

«Olha, Ónio,
queres que te diga mais?
Faz-te poeta do hoje e do ontem!
Faz-te poeta do hoje!
Faz-te poeta!
Faz-te!».

 


 

ANTÓNIO HARTWICH NUNES.
POETA SEM QUERER
| José Rui Teixeira
O LIVRO DE ÓNIO

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