O infinito trabalho da destruição

Jul 21, 2021 | Destaques

O que Rui Nunes faz é construir uma escrita que esteja à altura destes sítios de uma destruição sem fim, quase sem tempo [«uma dor tão antiga que não chegou a nascer»]. Que significa isto? Que é a própria escrita enquanto gesto que tem de se tornar consciente de si mesma. Não se trata, evidentemente, de um qualquer resquício de meta-narrativa ou algo nas imediações desse experimentalismo tantas vezes inconsequente, mas de algo diferente, de uma recusa da naturalização e dos mecanismos que estabelecem uma continuidade entre texto escrito e mundo. O conjunto de sinais de pontuação deixados sozinhos, as frases que não terminam e cuja mancha gráfica tantas vezes parece poesia, todo esse atrito que tem de ser ignorado para que a leitura possa avançar, para que o pacto com o leitor possa ser restabelecido: é a forma que Rui Nunes encontra de desnaturalizar a linguagem e de, consequentemente, não subsumir a destruição a um qualquer sentido, de quebrar qualquer encontro possível entre texto e mundo, isto é, de contrariar o realismo generalizado.
A essa destruição sem fim, ao estilhaçamento do mundo que nada tem de nostálgico e que desde sempre aconteceu – já há muito que a catástrofe foi declarada permanente –, esta escrita responde através destes restos que vai juntando, destes lugares na proximidade da morte, destas vidas, quaisquer, que se infiltram, que conhecemos e vemos. É um outro realismo, talvez – que destrói os protocolos que tentam dar consistência ao real. É marginalia, texto qualquer que se infiltra nas retóricas eloquentes.

João Oliveira Duarte, Rui Nunes. O infinito trabalho da destruição.
Jornal i [ano 12, n.º 3487], 21 jun. 2021, 22-23.

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