Em abril de 2006, Agustina Bessa-Luís prefaciou a antologia da poesia de Hilde Domin: Estende a mão ao milagre [organizada e traduzida por Maria José Peixoto Lieberwirth]:
Tal como a encontrei, numa tarde de chuva, com uma blusa branca a brilhar [cetim fulgurante chamava-se a esse tecido que esteve na moda nos anos 30], imaginei uma coreografia para um ballet. Mais tarde foi produzido o ballet Dominga e assim se conserva no tempo a figura de Hilde, a poetisa.
Está morta, caiu varada pelos anos numa praça de Heidelberg, tendo comprado umas luvas que não chegaria a usar. Comprar umas luvas é um trabalho poético; já há pouco quem saiba ensaiar umas luvas no balcão da luvaria. Primeiro, fincando o cotovelo na almofadinha de veludo verde; depois, enfiando os quatro dedos ágeis e resolutos, dando à pele pequenos puxões para que adira. Por fim, o polegar. O polegar é um dedo como encarregado do tambor-mor, aquele que, para a luva ser perfeita, tem que ser cortado por um artista. Hilde tinha todo o ar de saber calçar umas luvas no balcão polido de uma luvaria. É uma tarefa poética, cheia de discurso poético, merecedora de versos em catadupa.
“Ela teve na vida uma sorte extraordinária”, diz – de Hilde Domin – Marcel Reich-Ranicki. Fora de toda a regra, quando devia estar refugiada em qualquer parte, passou um tempo feliz e despreocupado na República Dominicana. Era casada com um homem de cultura, belo e bom conselheiro. Ser bom conselheiro de uma mulher como Hilde é uma recomendação extraordinária. No exílio fácil da República Dominicana, ela foi professora e escreveu poesia de protesto. Era uma judia para quem ser judeu tem a componente história e o resíduo individual, que é o da contradição. Isto permite um campo de criação duma imensa força e lucidez. Reservando-se, para ela própria, um dedo de paixão, como um dedo de bebida espirituosa.
Hilde Domin teve uma morte elegante. Foi comprar umas luvas e, depois de as provar, à maneira antiga, saiu para a praça de Heidelberg à procura dum táxi. Não tropeçou, não foi empurrada; caiu simplesmente, com o pequeno embrulho na mão, e aí teve a ideia de que era confortável outro exílio: o de morrer.
Lembro-me dela e da pomba litúrgica, pomba do Espírito Santo, por cima da cama. Do vento que sacudia as janelas, das paredes forradas de livros de História, de Arte, de muitas coisas. Não sei se alguém se vai lembrar dela como eu: como o fulgor de uma vida, tranquila na sua razão de protesto e de revolta, de tudo o que faz de nós todos seres padecentes e optimistas, e poetas.